A PESQUISA
Ivone Maya
O Projeto de Pesquisa intitulado Folhetos
de Papel: Memória do Cordel tem como prioridade resgatar a obra
de Leandro Gomes de Barros, considerado o patrono da Literatura Popular em Verso,
o primeiro a publicar, editar e vender seus poemas, acumulando múltiplas
funções.
Os folhetos que aqui se encontram à disposição do usuário,
pertencem a duas Coleções da Fundação Casa de Rui Barbosa:
a de Sebastião Nunes Batista, filho do poeta popular e editor, Francisco
das Chagas Batista, contemporâneo e conterrâneo de Leandro; e a
da própria Instituição, caracterizada pelos folhetos
que estão nos acervos de diversos pesquisadores, dentre os quais Manuel Cavalcanti Proença,
Orígenes Lessa e Manuel Diegues Júnior.
Nesse primeiro conjunto destacam-se os folhetos raros publicados a partir de
1906, tirados no prelo doméstico de Leandro ou nas inúmeras tipografias
do Recife e da Paraíba. Após sua morte, ocorrida em 1918, o genro
Pedro Baptista, dono de uma editora em Guarabira, continua a editar esses folhetos
até 1920. Impressos em papel manilha, caracterizam-se pelas vinhetas
simples, alguns ornamentos e o colorido já apagado pelo tempo. Encontram-se
nesse lote também os de capas mais trabalhadas, em que vemos desenhos,
às vezes clichês e pequenas figuras que remetem ao universo medieval,
provavelmente retirados dos livros e suplementos dos jornais daquela época.
São chamados de folhetos
sem capa.
Alguns desses exemplares trazem a assinatura, em caligrafia caprichada, dos parentes de Leandro: a esposa, Venustiniana Eulália de Barros, a filha, Rachel Aleixo de Barros Lima, o filho, Esaú Eloy de Barros, conferindo maior grau de autenticidade ao conjunto e, sem dúvida alguma, raridade. Imaginamos o cuidado com esses folhetos, conservados pela família como
bens valiosos - o verdadeiro patrimônio recebido como herança -
e que em breve completarão um século, se tomarmos como referência
a data de 1906.
O segundo conjunto compõe-se dos folhetos reeditados a partir da década
de 40, sob o nome de diversos autores, especialmente João Martins de
Ataíde, que adquiriu a propriedade literária de Leandro Gomes de Barros
em 1921. No entanto, desde 1910 Leandro parece ter percebido o problema do plágio
de sua obra e começa a colocar avisos nos finais dos folhetos prevenindo
os leitores, como esse do poema A Força do Amor: "O auctor
procederá judicialmente contra quem reproduzir o presente folheto".
Também decide publicar seu retrato em cada exemplar como forma de impedir
a ação dos rivais!
Em 1945 Athayde vendeu os direitos autorais de suas obras, inclusive o “legado”
de Leandro Gomes, a José Bernardo da Silva, poeta alagoano radicado em
Juazeiro do Norte (Ceará), dono da Tipografia São Francisco, especializada
em Cordel. Dessa forma, a obra original de Leandro sofrerá diversas modificações
ao longo do tempo, seja através de acréscimos ou supressões
de estrofes, seja pela retirada de seu nome da capa ou dos versos no final,
às vezes em forma de acróstico,
freqüentemente alterado para descaracterizar a autoria.
Esse é o problema mais complexo da obra do poeta: reconhecer seus poemas
e reconstituir a autoria. O próprio Sebastião
Nunes Baptista encarregou-se de solucionar essa questão, mostrando num
ensaio fundamental a quantidade de folhetos de Leandro erroneamente atribuídos
a outros autores.
São esses bens abstratos - única riqueza perene - materializados
nos poemas de Leandro, fragilizados pela ação do tempo, mas pertencentes
ao patrimônio popular e conservados pela transmissão oral, que
nos dispusemos a preservar do esquecimento.
I. O Acervo
O Acervo se destaca por várias razões. O primeiro fator relevante
é que esses folhetos, agrupando três ou quatro poemas num só
exemplar, fornecem uma idéia sistemática da produção
do autor e da vida nordestina daquela época. Temos uma multiplicidade
de assuntos, que vão desde críticas ao governo - num tom quase
sempre de indignação - até as reclamações
contra a carestia, as guerras e o desregramento da sociedade.
Trata-se de um poeta antenado não só com a fabulação,
como também preocupado com os destinos do País, com a ineficiência
do governo e seus presidentes (a Primeira República) no combate aos males
sociais (impostos, custo de vida, greves), ressabiado com a presença
do capital estrangeiro (representado, sobretudo, pelos ingleses) e indignado
com o descaso em relação às populações menos
favorecidas.
Justifica-se, portanto, sua indiscutível admiração pela
figura do Antonio Silvino, comparado a Napoleão e Carlos Magno em seus
poemas. A violência do cangaço é abonada, tendo-se em vista
que crimes maiores são perpetrados diariamente contra essa população
de destituídos, deserdados do espaço público, miseráveis
que migram de uma região a outra do País, em busca de melhores
condições de vida. Leandro faz da palavra poética sua plataforma
política, acreditando na utopia de uma sociedade mais justa, mais humanizada,
embora para obtê-la tenha que se valer da figura violenta do cangaceiro.
II. Os Temas
Leandro passeia por várias tonalidades temáticas e apresenta em
seus poemas aqueles conteúdos que o povo identifica, se sente representado.
É, portanto, o poeta popular mais apreciado de seu tempo e parâmetro
para outros: sempre comparado, mas nunca superado. Citado nos desafios, pelejas
e encontros de feira e, não raro, considerado o melhor: o primeiro sem
segundo, no dizer de Athayde. Poeta de muita fama que, por si só, constitui
parte da bibliografia obrigatória, que se faça sobre o Cordel
nordestino.
Vemos nitidamente nesse Acervo grandes blocos temáticos, que orientaram
nossa leitura analítica, embora com ramificações e personagens
distintos. O primeiro é quando a crítica ao governo está
em pauta, através de seus representantes máximos - o fiscal, o
coletor, o oficial de justiça, etc. e Leandro não usa de subterfúgios
para denunciá-los. Ou então, se vale das figuras alegóricas
do mundo medieval para dramatizar a experiência de sua gente sofrida.
Aí entram em cena a "dinastia dos deserdados", o bloco dos
desditosos da Sorte: proliferam, não necessariamente nessa ordem, as
referências ao
Azar (sempre com maiúscula, porque se trata de um
personagem central), à Caipora (assemelhada ao Diabo), à Derrota,
que se casou com o Mal Aditado e gerou a bizarra prole que perseguirá
até o fim dos dias os que não têm sossego! Todos misturados
dentro do mesmo embornal, sabe-se lá Deus porquê! Razões
de poeta...
Leandro se vale do humor ácido para criticar o que está fora do
lugar, tanto na sociedade quanto nas pessoas. A sátira ocupa então
lugar de destaque em sua obra e, na verdade, constitui um segundo grande conjunto
temático, presente nos folhetos sobre política, costumes e até
mesmo religião. Observamos ainda uma espécie de desconforto em
relação aos novos tempos, às coisas mudadas, e a luneta
do poeta focaliza com prioridade a figura da mulher, pois é ela que exprime
com mais rapidez as modificações do comportamento social.
Na verdade, trata-se de uma personagem autoritária, que tiraniza literalmente
o homem/marido, bem diferente da idéia corriqueira que temos da mulher
nordestina e da sociedade conservadora em que está inserida. É
possível que seja fruto da imaginação do poeta, mas em
sua obra existe a denúncia de um certo machismo, só que às
avessas, pois é o homem quem se queixa e chama a atenção
para o temperamento difícil da mulher, sempre insatisfeita e volúvel...
No entanto, a figura mais ironizada por Leandro dentro do universo feminino
é mesmo a
sogra, personagem surpreendente em sua obra, inimigo
número um da paz doméstica, associada com freqüência
ao Diabo e ao fiscal, pouco malignos se comparados a ela! O poeta atribui a
“durabilidade” da sogra ao fato de ainda não ter sido inventada
uma vacina - solução eficaz para nos livrarmos dessa praga - e
não deixa passar uma oportunidade sem mencioná-la, acentuando
sempre sua condição de nefasta, de mal des-necessário...
Faz parte ainda desse universo temático, textos que constituem verdadeiros
ciclos dentro da Literatura de Cordel. O destaque é para Antonio Silvino,
visto pelo seu lado mais “humano”, exaltado como justiceiro. Na
mesma linha estão os poemas sobre animais, que realizam ações
cabíveis na esfera humana ou colocam em evidência as tradições
da cultura popular brasileira, como é o caso do famoso poema O Boi
Misterioso, encontrado em toda a Literatura nordestina.
Da mesma forma que existe uma “linhagem” do Azar, representada pelos
filhos do Rei Miséria - alegoria máxima para explicar as mazelas
sociais - encontramos uma galeria de anti-heróis, tais como João
Lezo, Pedro Malasartes, João Grilo, Cancão de Fogo, que seriam
imortalizados por nossos escritores. Leandro retoma a tradição
do Romanceiro ibérico, através de seus personagens mais conhecidos:
Bertoldo, Bertoldinho e seu filho Cacasseno, em cujas estórias de fundo
satírico, o poeta se espelhou para mostrar o futuro jeitinho brasileiro,
o discurso da malandragem no universo da narrativa popular.
Há ainda algumas pelejas famosas como a de Romano e Ulisses Baiano
e, nessa mesma linha de composição destacamos o O Marco Brasileiro
e Como derribei o Marco do Meio Mundo - escritos por Leandro respectivamente
entre 1916 e 1917, que se caracterizam pela maior quantidade de versos e pela
originalidade do assunto: a preocupação em defender o território
poético do ataque dos cantadores, considerados meros repetidores da obra
do poeta, este sim, criador.
Não são muito numerosos os folhetos cuja temática gira
em torno da religião/religiosidade e, dentre esses, destacamos um exemplar
que critica o Padre Cícero, visto menos como religioso e mais como articulador
político. Destacam-se, no entanto, os folhetos que tratam da perda da
influência do catolicismo para o protestantismo, que Leandro designa sob
o nome de nova-seita e em que vemos a sátira aguda do poeta à
falsa religiosidade e a seus seguidores.
Sobressaem também no conjunto da obra, os poemas retirados da tradição
européia, representada pelo ciclo da cavalaria, em que se narram as grandes
batalhas medievais, com destaque para os doze cavaleiros de Carlos Magno, e
pelas adaptações dos romances tradicionais, cheios de amor e sofrimento,
como os de Alzira, Genoveva, a Imperatriz Porcina, Branca de Neve e o Soldado
Guerreiro, etc.
III. A Expansão semântica
O desejo de aumentar as possibilidades de leitura da obra de
Leandro, revelando ao público a originalidade de seus poemas e a quantidade
de subtemas existentes, resultou numa ampliação de assuntos que
não tinham sido devidamente mapeados na atual classificação
da Fundação Casa de Rui Barbosa. Podemos apontar nesse conjunto
de poemas alguns grupos temáticos permanentes, como a sátira (política,
social), o cangaço, o amor, a religião; e outros mais específicos,
que foram assinalados à medida que julgávamos interessante para
consulta, tais como crítica à mulher, presença de estrangeiros,
eleições, carestia, escravidão, etc.
IV. Dar a Leandro o que é de Leandro
O fascínio do nome de Leandro e a importância
de sua obra parecem justificar o plágio que o poeta experimentou ainda
em vida: fato que começou com Athayde e foi continuado por outros. No
acervo analisado pudemos constatar tanto o acréscimo ou supressão
de estrofes, quanto a modificação inteira do conteúdo original
por autores que, ao parafrasearem ou plagiarem Leandro, paradoxalmente, estariam
prestando tributo àquele que é considerado unanimemente o grande
criador da Literatura de Cordel.
Para efeito de comparação, o usuário irá encontrar
diversas versões de um mesmo poema, baseando-nos sempre na Coleção
de Folhetos raros - cujas edições foram feitas ainda em vida do
autor - e poderá verificar as modificações ocorridas a
partir do texto original.
Infiltrar vários elementos estranhos na obra original, exige de nós,
contemporâneos da modernidade, uma dupla reflexão: em primeiro
lugar é, como se a obra-referência precisasse ser acrescentada
ou ter algumas partes eliminadas para que o leitor pudesse melhor entendê-la:
nesse caso, aqueles que mexeram no que já estava dito, agiram um tanto
por traição, mas também (quem sabe?) pelo desejo secreto
de querer ter escrito daquela forma, aquela história, aquele tema tão
apreciado pelos outros...
É evidente que não devemos deixar de lado o aspecto comercial,
isto é, a cotação na bolsa da cultura popular que teriam
as ações Leandro! Mesmo que o nome do verdadeiro poeta estivesse
falseado é possível pensar que o público conhecia suas
histórias e seu jeito de narrar e continuasse a comprar os folhetos,
sem se importar muito com as modificações.
Também podemos supor que aqueles que retiraram o nome de Leandro pretendiam
acabar com o direito exclusivo de um só autor: a obra passa a circular
sob outros nomes, como se a poesia popular retomasse o caminho da produção
coletiva da Idade Média, não identificando os verdadeiros donos.
É claro que é uma idéia polêmica, sobretudo porque
sabemos que Leandro foi um dos primeiros a editar seus versos e a se intitular
dono deles, publicando-os. Mas podemos pensar se esse gesto tão criticado
de Athayde, José Bernardo e outros, não teria contribuído,
inversamente, para garantir a perpetuidade dessa obra e, por extensão,
da própria Literatura Popular. Apesar de ter provocado tantas dúvidas
sobre a autoria dos poemas.
Faço minhas as palavras do grande escritor e tradutor Jorge Luis Borges
ao estudar outro magnífico conjunto textual, As Mil e uma Noites,
cuja composição e recomposição, século após
século, através das múltiplas inserções,
interpolações, reserva-nos sempre surpresas e desencoraja qualquer
possibilidade de busca de um original ou de uma única versão mais
fidedigna:
"Houve suspeitas de que Galland
tivesse falsificado a narrativa. Acho a palavra 'falsificar' injusta e maligna;
Galland tinha tanto direito de inventar um conto quanto aqueles confabutatores
nocturni. Por que não se pode admitir que, após ter traduzido
tantos contos, ele quis inventar um, que juntou aos outros?"
AGRADECIMENTOS
Este é um site dedicado aos que se interessam pela Cultura
e Literatura Popular, sejam eles intelectuais, pesquisadores, homens do povo,
artistas, curiosos, desde que irmanados por uma certa nordestinidade...
Ariano Suassuna, Cecília Meireles, João Cabral de Melo Neto, João
Guimarães Rosa, Mario de Andrade - Mestres das palavras;
Antonio Houaiss, Manuel Cavalcanti Proença, Manuel Diégues Jr.,
Orígenes Lessa, Raymond Cantel, Ruth Brito Lemos Terra, Samira Nahid
Mesquita, Sebastião Nunes Baptista, Thiers Martins Moreira - In
memoriam;
Marlene Castro Correia, Teresa Sarno, pelas primeiras referências
em sala de aula na Graduação em Letras da UFRJ;
Rachel Valença (FCRB) e Francisco Carlos Teixeira (Faperj), pelo empenho
em viabilizar o Projeto desde o início;
Fundação Casa Rui Barbosa e Faperj, instituições
que tornaram possível o Projeto;
LACRE - Laboratório de Conservação e Restauração
da FCRB, que ajudou a preservar os folhetos raros da corrosão do tempo
e da "voracidade" das traças;
DocPro e Opus4 Design, que executaram tecnicamente o trabalho;
E Antonio Nóbrega, pelo gesto generoso.